Prisões, Violência e Sociedade: Debates contemporâneos

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João Marcos Buch

Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional de Joinville-SC

Convidado a prefaciar esta obra, composta por treze artigos de excelência, que transitam pelo sistema de justiça criminal, passando por temas que necessitam de debates democráticos urgentes, senti uma grande honra, proporcional à preocupação pela árdua tarefa posta, diante do alto nível científico dos autores. São temas que atingem a todos cedo ou tarde, que abordam o encarceramento em massa, a irracionalidade penal, drogas e prisões, educação no cárcere, as questões de gênero, polícia e organizações paralegais. Após muito refletir, sob o peso da responsabilidade, resolvi deixar a metodologia científica de citações e referências de lado – ela já fará parte dos artigos que integram o livro – e trazer nestas breves linhas prefaciais algo situado nas minhas impressões, experiências e problematizações sobre o cenário brasileiro, considerando prisão, violência e sociedade.

 Então, é preciso primeiro lembrar um pouco sobre os direitos humanos. Eles integram uma longa marcha em direção à consolidação do paradigma jurídico que guarda na dignidade humana o seu valor fonte. Sabe-se que com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Assembleia Nacional Francesa de 1789 e as Bill of Rights, das Colônias Americanas de 1776, consagraram-se os direitos civis. Porém, o século XX e as duas grandes guerras, especialmente, a Segunda, mostrou que o positivismo kelseniano não foi suficiente a impedir o holocausto. Era preciso então fincar fundamentos nos direitos sociais e fazer com que o estado não só respeitasse os direitos civis individuais como também trabalhasse em prol do sujeito. Nesse contexto surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU – 1948). Entre outros, foi criada ainda a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma – 1950) e a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), esta ratificada pelo Brasil em 1992. Especialmente sobre pessoas privadas de liberdade, estabeleceram-se as Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros (ONU – 1955), atualizadas em 2015 na África do Sul, adquirindo o nome de Regras de Mandela e as Regras de Bangkok, que tratam das mulheres encarceradas. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagrou nessa linha os direitos e garantias fundamentais, e então, normas jurídicas que visam conferir tratamento humano digno aos presos existem. O que não existe é política de Estado para efetivar essas normas.

 Seguindo políticas neoliberais dos EUA (leia-se Rudolf Giuliane), conforme bem lembra Löic Wacquant (Prisões da miséria), com abandono dos valores culturais, esquecimento dos expertos e descompromisso com inclusão, o Brasil passou a criar medos e tragédias sociais, fortalecendo um Estado policial. Olvidaram-se assim os direitos humanos e os paradigmas constitucionais e seguiram-se leis penais de emergência, cujo ápice está na Lei Antidrogas, todas aditando um Código Penal que em sua parte especial continuava e continua ideologicamente comprometido com o capital. O direito penal pátrio assim, e a criminologia aponta há tempos, seja ela de base social ou crítica, está em crise. Ele é segregacionista, destinado a encarcerar na sua maioria pessoas de 18 a 28 anos de idade, pretos, pardos, social e economicamente vulneráveis. Ele é insipiente, pois não previne o crime. É desprovido de fundamentos racionais e científicos e ignora os valores éticos da sociedade e os fatores políticos e históricos do crime. Ou seja, o direito penal não compreende o fenômeno da violência.

 O mais grave é que esse direito penal tem apenas contribuído para superlotar as prisões. Atualmente existem mais de 630 mil presos no Brasil, a quarta maior população carcerária mundial, ficando atrás dos EUA, China e Rússia. Há pouco mais de uma década essa população era de menos de 300 mil. A perspectiva, a seguir essa linha encarceradora, é de chegarmos a 2020 com mais de um milhão de presos. E não há vagas para todo esse contingente. O Estado não investiu e não investirá em prisões, por uma questão puramente de cálculo matemático/econômico. O sistema penitenciário brasileiro está falido. São detentos sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, acesso à saúde, coisificados nos navios negreiros do século XXI. Para ficar apenas em alguns exemplos onde já estive, posso citar a) o Complexo Prisional de Pedrinhas, onde é possível que um detento seja morto e desapareça sem deixar vestígios dentro de um pavilhão; b) o Presídio Central de Porto Alegre, com seus cerca de 4.500 presos, separados em galerias e facções, em que saneamento básico não existe e os esgotos in natura das celas passam por garrafas pet adaptadas nas celas abaixo e vão até as janelas por onde escorrem pelas paredes até se depositarem aos pés dos pilares, nos pátios de banho de sol e visita; c) a “Máxima” em Campo Grande, com seus mais de 2 mil detentos, superlotada ao extremo, contando diariamente com pouco mais de 10 agentes penitenciários na ativa para cuidar de todo o complexo; d) unidades de Santa Catarina, com prisão inclusive comportando necrotério, onde se fazem autópsias e onde se deixam corpos putrefatos de pessoas não identificadas por entre detentos.

Em todos esses lugares encontram-se trabalhadores que lutam para que essas tragédias diminuam, para que as condições das unidades prisionais melhorem, para que as pessoas presas sejam tratadas com dignidade. Especialmente, há juízes que trabalham horas e mais horas, até tarde da noite, jurisdicionando sobre os processos e sobre os presos e buscando incessantemente demandar o Estado para que volte ações em prol do sistema prisional. Mas, não importam os esforços que esses Dom Quixotes (entre os quais me incluo) façam; o fato é que o sistema escravocrata das chibatadas e do senhor feitor nunca deixaram de existir e esse calabouços coletivos são uma lembrança constante de que neste país nem todos os seres humanos são tratados como seres humanos. Além disso, a ausência do Estado dentro das prisões tem feito nascer e crescer nas veias do sistema facções e organizações paralegais. Quando preso, é preciso sobreviver. Para tanto, é preciso se aliar, mesmo que para lutar contra o Estado, de forma mais violenta e opressora. Some-se a todo esse caos a terrível criminalização secundária das mulheres: mais de 30 mil detentas no país, consequência quase que exclusiva da hedionda Lei Antidrogas. A mulher presa é tratada como homem pelo sistema e mais não precisa se dizer!

 Diante disso, temos que apontar caminhos. Quais? Os artigos que compõem esta obra mostram alguns, pela sua própria natureza reflexiva e crítica. Tenho que um deles é o enfrentamento à cultura do encarceramento. Para isso precisamos apresentar lugares onde o modelo neoliberal Rudolf Giuliani não foi aplicado (Alemanha, Holanda, Noruega, Islândia, entre outros) e onde prisões têm sido fechadas pelo simples fato de que o encarceramento tem diminuído e a violência reduzida.

Há ainda que se ser solidário, compreender as dificuldades de todos os atores do sistema de justiça criminal e penitenciário. Saber que policiais perdem a vida porque acreditam estar em guerra, policiais vítimas de um modelo equivocado de segurança pública, fruto de um governo que não compreende as funções constitucionais desses órgãos.

Devemos compreender as dificuldades dos agentes penitenciários, invisíveis em suas atividades e por isso não reconhecidos na sua profissão. Olhar para as vítimas da violência, que sofrem traumas graves e são abandonadas em sua dor. Finalmente, é fundamental apresentar alternativas penais, através das penas restritivas de direitos e das medidas alternativas à prisão, estas fortalecidas pelas audiências de custódia. Alternativas que se afastem do viés penal de controle e através de instrumentos propiciados pelos departamentos penitenciários permitam ao juiz, no lugar de determinar a prisão de alguém, aplicar medidas de responsabilização e inclusão. Reduzindo o encarceramento, deixando o direito penal no seu devido lugar, como a última ratio, o Estado conseguiria cuidar conforme a Constituição e os direitos humanos daqueles que, superadas todas as alternativas, depois do devido processo legal, tiveram a privação da liberdade imposta. 

 Em 2014, numa visita a Berlim, quando então pude trocar alguma experiência com juízes e advogados alemães, aproveitei para conhecer o Campo de Concentração de Sachsenhausen, que fica nos arredores da pujante capital germânica. Naquele local, milhares de opositores políticos, judeus, ciganos e homossexuais foram exterminados durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao adentrar no campo, passando pelo emblemático portal sob as inscrições “Arbeit Macht Frei” (em tradução livre: “o trabalho liberta”), caminhando por entre escombros e galpões preservados, senti profunda angústia. Mais, senti culpa, uma culpa amorfa, um lamento por ter chegado tarde demais, 70 anos atrasado, e não poder me irmanar na dor que aquelas pessoas sofreram, que eu jamais sofreria.

Hoje, quando piso no chão de uma prisão e vejo o holocausto daquela população formada em sua maioria por jovens negros e pardos, todos amontoados, juntos e misturados, confinados em espaços sujos, com ratos e baratas, sem vestes adequadas, sem materiais de higiene, comendo com as mãos a pastosa ração diária servida; quando percebo que, ressalvadas exceções, boa parte não sobreviverá, matará e morrerá antes dos 30 anos, sinto profunda angústia, como a que senti no campo de concentração. Mas agora, espero não sentir culpa, espero chegar a tempo, espero com esperança.

 

As organizadoras

A coisa mais cruel da crueldade é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E… O esforço mais árduo é permanecer humano em condições desumanas. (Janine Bauman)

Este livro, organizado na forma de coletânea, se propõe a uma reflexão mais ampla sobre PRISÕES, VIOLÊNCIA E SOCIEDADE nos debates contemporâneos. A publicação compõe o quadro de iniciativas desenvolvidas pelo Observatório da Violência e Sistema Prisional, na direção de proporcionar o debate profícuo e, em especial, intenta-se ampliar a visibilidade de temáticas ainda marginalizadas no país.
A publicação copila resultados de investigações acadêmicas, de pesquisadores (discentes e docentes) de programas de pós-graduação stricto sensu em instituições de prestígio no país e na Argentina, são elas: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade Estadual de São Paulo (USP), Centro de Formação Humana ( Fathel) e Universidad Del Salvador (Usal).
A obra é composta por treze artigos que compõem os eixos temáticos: Violência, poder e crime organizado; educação em espaços de privação de liberdade e Gênero, violência e prisão. Os temas tratados se inter-relacionam e se articulam no contexto social, porém, abordados pelos autores de forma independente.
Assim, as formulações de conhecimento apresentadas constituem uma importante inflexão no processo que visa auxiliar na sistematização do conhecimento contemporâneo. Para isso, observam os fenômenos sociais que circunscrevem as temáticas relacionadas em cada eixo, prestigiando as diferentes dimensões da violência urbana ou de gênero, ao sistema punitivo e suas “práticas educativas”, o crime organizado dentro e fora das prisões, a lei de drogas e ainda, o sistema justiça criminal, sobretudo, os analisando num contexto de profundas transformações em curso na sociedade.
Aos leitores desejamos uma proveitosa imersão no debate, que resulte em inquietudes e novos conhecimentos, contribuindo, inclusive, para o reconhecimento dos direitos da pessoa humana como uma prática sensível e inerente à existência em sociedade.

Boa leitura!

Prisões, violência e sociedade – debates contemporâneos

Eli Narciso Torres (org.)

Capítulo 1. Observatório da violência e sistema prisional: relatos de uma trajetória

Gesilane de Oliveira Maciel José (Unesp)

Eli Narciso Torres (Unicamp)

Beatriz Rosália G. X. Flandoli (UFMS)

VIOLÊNCIA, PODER E CRIME ORGANIZADO

Capítulo 2. Racionalidade política e questão penal: contribuições foucaultianas para uma crítica do presente

Dirlene de Jesus Pereira (UEL)

Capítulo 3. Indicadores do punitivismo, encarceramento e genocídio da juventude negra: um panorama sobre a seletividade do sistema de punição

Carolina Bessa Ferreira de Oliveira (USP)

Eli Narciso da Silva Torres (Unicamp)

Osmar Torres (UFMS)

Capítulo 4. O dispositivo médico criminal em São Paulo: drogas e prisões no centro da capital paulista

Marcelo da Silveira Campos (UFGD)

Capítulo 5. O encarceramento em massa em São Paulo e o fechamento das instituições prisionais: um “eclipse” da etnografia prisional no Brasil?

Rodolfo Arruda Leite de Barros (UFGD)

Capítulo 6. O policial de fronteira e o policial da fronteira: efeitos sociais das políticas nacionais de segurança em Corumbá-MS

Gustavo Villela Lima da Costa (UERJ)

Giovanni França Oliveira (UFMS)

Capítulo 7. O Estado penal e a organização criminosa “Primeiro Comando da Capital” (PCC) no Brasil

Mônica Leimgruber (Usal/Argentina)

Eli Torres Narciso Torres (Unicamp)

EDUCAÇÃO EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

Capítulo 8. Ações educacionais nas prisões e a garantia de direito aos indivíduos privados de liberdade

Gesilane de Oliveira Maciel José (Unesp)

Capítulo 9. Educação aos privados de liberdade em Mato Grosso do Sul

Maria de Fátima de Souza Moreno (UFMS)

Beatriz Rosália Gomes Xavier Flandoli (UFMS)

Capítulo 10. Educação prisional: mecanismo de autonomia ou de poder?

Leandra Salustiana da Silva Oliveira (UEMS)

Mônica Renata Dantas Mendonça (UFMS)

Renato Barbosa Queiroz (UEMS)

GÊNERO, VIOLÊNCIA E PRISÃO

Capítulo 11. Punição, aborto e resistência: uma análise do caso “Neide Mota e as dez mil mulheres”

Alexandra Lopes da Costa (UFGD)

Capítulo 12. Uma reflexão sobre o gênero diante do sistema penitenciário brasileiro

Wilson Roberto Batista (PPGE – Unesp)

Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo (PPGE – Unesp)

Capítulo 13. Mulher encarcerada: narrativas entre o sofrimento e a indignação

Mônica Renata Dantas Mendonça (UFMS)

Hélio Roberto Braunstein (UFMS)

Lançamento, em breve.